O aumento anual do número de casos de câncer em todo o mundo chama a atenção para as estratégias de prevenção, incluindo o diagnóstico precoce da doença, como preconiza as comemorações do Dia Mundial do Câncer, nesta quinta-feira (4/2). Somente no Brasil, a estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca) é de ter havido cerca de 450 mil novos casos de neoplasias – nome dado à multiplicação anormal de células do corpo – até o final de 2020. Contudo, a velocidade do avanço tecnológico e farmacêutico dos tratamentos de câncer não é acompanhada pelo atendimento no sistema de saúde, um dos principais motivos da judicialização relacionada aos casos de câncer.

De acordo com o relatório Justiça em Números, mais de 2,5 milhões de ações relativas ao direito à saúde deram entrada no Judiciário brasileiro nos últimos seis anos. Os novos medicamentos para tratamento das neoplasias malignas estão entre os principais objetos dos processos judiciais.

Neste cenário, a conselheira Candice Lavocat Galvão Jobim, supervisora do Fórum Nacional de Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), explica que o trabalho dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Nat-Jus) é importante para produzir subsídios que permitam decisões baseadas em evidências científicas. “Quando o usuário vai ao Judiciário antes mesmo do medicamento ser incorporado e fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o magistrado tem acesso a esses pareceres, para saber a respeito da eficácia daquele tratamento.”

Além disso, a conselheira lembra que as notas técnicas são personalizadas. “Elas são feitas para aquele caso concreto, aquele CID (Código Internacional de Doenças), aquele paciente. Então, o magistrado tem uma informação rápida, segura, customizada a respeito do caso e consegue dar celeridade às ações judiciais.”

Disponíveis no Banco Nacional de Pareceres, o e-NatJus, as notas e pareceres técnicos registram o pedido, se há reconhecimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), se foi incorporado ao SUS e se a tecnologia será efetiva para o caso específico, entre outros dados. “O Fórum tem um papel importante de tornar a judicialização mais inteligente, com uma ação positiva do Judiciário. As notas técnicas contornam a diferença de pensamentos entre médicos e juízes”, afirma o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Fórum, Gonzalo Vecina.

Por exemplo, em setembro de 2020, foi solicitada uma nota técnica em relação ao medicamento Azacitidina para um paciente de Santa Catarina, de 88 anos, com diagnóstico de síndrome mielodisplásica – distúrbio em que células formadoras do sangue anormais se desenvolvem na medula óssea. Mesmo que o componente não esteja disponível pelo SUS, foi considerado efetivo para o tratamento desse paciente, conforme a evidência científica para o caso.

O mesmo medicamento foi pedido em janeiro de 2021, para uma mulher de Brasília, de 62 anos, com o mesmo diagnóstico. Contudo, nesse caso, a condição da paciente não seria beneficiada pelo remédio, podendo ser administradas outras opções disponíveis no SUS, que seriam mais adequadas ao quadro específico.

// Acesse os pareceres e as notas técnicas no e-NatJus

“Se já existe um medicamento disponível e protocolo adequado, com um custo menor para o SUS, vale a pena indicar a posologia, se é eficaz para o problema”, ressalta o membro do Fórum e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Giovanni Guido Cerri. Os pareceres e notas técnicas tratam da eficácia das drogas, por ser uma das áreas que tem maior índice de judicialização. “O parecer é importante para relatar a eficácia para os casos específicos.”

Estrutura

O Fórum Nacional de Saúde também está levantando informações sobre a estrutura, a gestão, a demanda e o tempo de atendimento, entre outros, dos serviços de Atenção Primária e Secundária da saúde. A pesquisa nacional, que está sendo finalizada pelo CNJ, vai dimensionar a rede de atendimento disponível, incluindo os serviços oncológicos, bem como a judicialização do setor. Os resultados devem ser divulgados pelo CNJ ainda neste primeiro semestre.

Candice Jobim ressalta que o levantamento pretende mapear o funcionamento, a estrutura e os cuidados na atenção primária para compreender a interlocução interinstitucional entre o sistema de justiça e a administração pública. “Os dados da pesquisa vão nos ajudar a construir um Plano Nacional com indicadores de melhorias na prestação dos serviços de saúde e redução da judicialização.”

A conselheira do CNJ informa que o plano terá impacto na gestão da saúde pública. “O plano nacional será construído com a participação de gestores estaduais e municipais de saúde para a elaboração de políticas que não sejam apenas impostas por decisões judiciais.”

Para o professor Giovanni Cerri, na maioria das vezes, a judicialização é causada pela falta de estrutura para atender os pacientes, enquanto outra parte se refere a medicamentos e procedimentos que ainda não foram incorporados ao sistema de saúde. “Ter acesso à saúde é uma questão fundamental. Que tipo de tratamento receber já é uma questão mais controversa, pois tem um fluxo de incorporação que talvez não siga a urgência do paciente. Mas tendo esse mapeamento da rede, será possível agir para corrigir deficiências e gargalos.”

Pandemia

Há uma expectativa que haja aumento no número de pacientes em busca de diagnóstico e tratamento para o câncer com o retorno às atividades cotidianas, após os picos da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19). Em 2020, 43% dos pacientes em tratamento foram afetados pela pandemia, segundo dados do Instituto Oncoguia, que trabalha com direito dos pacientes com câncer. O Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), também registrou queda de 30% no número de pacientes novos. Dados das Sociedades Brasileiras de Patologia e de Cirurgia Oncológica apontam ainda queda de 70% das cirurgias.

“Tivemos um problema dos dois lados: o sistema de saúde não conseguiu se estruturar para atender os pacientes com Covid-19 e o paciente crônico; e, do outro, o paciente se manteve afastado para não se contaminar. É preciso trabalhar para lidar com essa situação, para que não haja um desastre maior, com um aumento no índice de mortalidade dos pacientes crônicos, como é o caso do câncer. Sem esquecer que essa demanda reprimida também poderá parar na Justiça”, destaca o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, Gonzalo Vecina.

Diretor de advocacy do Oncoguia, Tiago Farina Matos também tem a percepção de ter uma maior judicialização na fase pós-pandemia. “A Lei dos 60 Dias (Lei nº 12.732/2012), que já sofre com o descumprimento normalmente, pode ser ainda mais prejudicada neste momento”, explica. A lei estabelece que o paciente com diagnóstico de câncer tem direito a dar início ao tratamento pelo SUS no prazo de 60 dias ou em tempo menor, conforme a necessidade terapêutica.

“É preciso pensar políticas públicas que reduzam os efeitos de outras patologias em casos como uma pandemia. Resgatar as pessoas que suspenderam seus tratamentos de câncer vai representar um grande aumento na demanda do sistema de saúde, impossibilitando, talvez, até o cumprimento das decisões judiciais nesse sentido”, ressalta Matos. Ele defende que todos os Poderes se mobilizem para pensar no impacto que o tratamento da doença em estágios mais avançados terá sobre o gasto público.

Dia Mundial do Câncer

Criado há 21 anos pela entidade internacional Union for International Cancer Control (UICC), o Dia Mundial do Câncer tem o objetivo de difundir a concepção de que os indivíduos podem reduzir o impacto da doença em sua vida, na das pessoas que ama e no mundo. Para 2021, a UICC propõe um “Desafio 21 dias para a mudança”, que mostrará como é possível alcançar um futuro mais saudável, por meio de hábitos de vida melhores. A prevenção primária deve ser associada ao diagnóstico precoce, que traz chances maiores de cura.

Segundo uma pesquisa divulgada em dezembro do ano passado pela Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc, na sigla em inglês), que faz parte da Organização Mundial de Saúde (OMS), a previsão para 2040 é que haja 28,4 milhões de novos casos de câncer em todo o mundo, o que significaria um aumento de 47% em comparação com os números atuais. Países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo ou médio devem ser mais atingidos, com alta de 95% de incidência. Atualmente, essa taxa é de 64%. A maioria dos casos de câncer é causada por uso de tabaco, dietas prejudiciais à saúde, excesso de peso e falta de atividade física, segundo a entidade.

A entidade internacional listou, ainda, os 10 tipos de cânceres mais comuns, isto é, que concentram mais de 60% dos novos diagnósticos e mais de 70% dos óbitos pela doença. O de mama foi o mais comum, responsável por 11,7% dos casos em todo o mundo. O de pulmão ficou em segundo lugar, com 11,4% dos casos, seguido do câncer de colorretal (10%), de próstata (7,3%) e de estômago (5,6%).

Com relação aos cânceres de mama e pulmão, a agência estima que o número total de sobreviventes nos primeiros cinco anos após receberem o diagnóstico seja de 50,6 milhões.

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